Somos Um


Foi no último feriado de outono que encontrei e me debrucei sobre o livro Somos Um, de Jorge Camargo.
Nele, no livro, o Jorge re-conta breves histórias de sua própria vida e de apaixonantes personagens históricos como Irineu, Agostinho, Pseudo-Dionísio, Anselmo, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, João da Cruz, Thomas Merton, nos quais Jorge se inspirou para compor músicas que, felizmente, acompanham a excelente obra literária que tenho em mãos. Que bom! (Obrigada, Joe!).

Em todos os textos o autor sinaliza pontos de intersecção, de ligação epistemológica entre ele mesmo e aqueles pensadores. Curiosamente eu também me vi, minúscula e ao mesmo tempo, participante entre eles. A identificação com o outro faz você se sentir parte integrante e foi exatamente isso que vivenciei.

Sentei-me no chão da sala da casa onde estou morando atualmente e, numa das muitas pausas para meditação, observei, não pela primeira vez, mas com maior profundidade, que estou defronte ao Cine Auditórium. Qualquer jequieense tem orgulho desse lugar por onde já passou tanta gente dessa nossa terrinha, que já foi cinema (que saudade dos matinés!) e já foi também até teatro.

Em anexo ao Cine Auditórium está o Centro Educacional Ministro Spínola que tanto contribuiu para o crescimento intelectual de nosso canto.

Do mesmo ponto onde estou, aqui no chão, logo ali, está o santuário da Imaculada Conceição. Tanto no “Ginásio” quanto no ‘Cine’ há inscrições romanas que não consigo discernir. Só sei que não foram escritas por acaso e vou procurar saber para postar por aqui os dois textos.

Meus colegas adolescentes do antigo Segundo Grau nos falavam que há uma ligação subterrânea entre a igreja e a casa do Padre. Não sei se isso é verdade, mas que haviam porões em nossas salas cheios de outras salas subterrâneas, existiam, sim. Os meninos afirmavam categoricamente que aquilo servia para proteção dos religiosos numa suposta guerra na cidade. Mas vem cá: não tivemos nenhuma guerra ou guerrilha por aqui, não, não é?

De qualquer jeito e voltando à ligação com o texto do Jorge, fiquei feliz por ter-me percebido num contexto, numa atmosfera de conhecimentos, curiosidades, riquezas culturais. Não me faltam poesias para viver.

A primeira música do Jorge, neste novo álbum, assinala que “Conhecer me ajuda a ser melhor.”

De fato, esta música é só o começo. Todas as faixas falam de amor, da imensurável riqueza de amar e de se espiritualizar. Da profunda importância de buscar a Deus, de dar um passo além de si mesmo, de se ampliar interiormente.

Amei!

Identidade Cultural x Preconceito


Descobriram que seu sobrenome era Canibá. E ele fora chamado pela coordenação do curso de Alfabetização Solidária (acredite!), do qual participaria por quinze dias, para prestar os seguintes esclarecimentos:

1. Você já se socializou?
2. Você seria capaz de atacar um de nós?
3. Seu pai e sua mãe, como são?
4. Como é sua convivência com os outros de sua tribo?

E o pobre Canibá foi tranqüilamente, embora ofendido e constrangido, respondendo a cada uma das perguntas dos professores do Departamento de Ciências Humanas de uma universidade daqui de nossa região.

Enquanto ele ia me contando esse fato eu ia ficando estarrecida. Como assim? Um grupo de professores de uma universidade? Pessoas do Departamento de Ciências Humanas? Como pode uma instituição acadêmica agir com tamanho preconceito? Ainda não entendi.

Canibá teria passado o maior constrangimento de sua vida dentro da academia.

Aquele não seria o único, mas ao meu ver, o pior.

Gente comum, dita ignorante, cometer tamanho preconceito com um índio já é inadmissível. Ser interpelado, porém, por um grupo de professores de nível superior, dotados da tola arrogância de pertencer à civilidade deve ser sido algo digno de nota. Tanto que o Canibá usou esse exemplo para me provar quanto preconceito sofre.

Eu me lembrei, enquanto ele contava a sua história, da seguinte pergunta: “se um canibal começasse a comer de garfo e faca ele seria considerado civilizado?” Até hoje eu havia guardado esta frase para criticar as regrinhas de etiquetas que querem empurrar em nós goela abaixo. E só agora percebi quanta indelicadeza ela guarda ao comparar costumes de tribos diferentes.

Se a comparação é rasa a tendência é tecer comentários horrendos sobre o que não se conhece direito ou sobre o que se tem medo.

Não estou defendendo práticas de antropofagia. Estou criticando a desumanidade e a perversidade com que tratamos pessoas em nome de nossos questionáveis valores.

E o que conhecemos dos índios atualmente, de um modo geral, além da triste e equivocada idéia de que eles não têm cultura e de que são “primitivos”?

O sábio pai do Canibá teria retirado o “L” final do sobrenome dos filhos pois o que ele sofrera de preconceitos já teria sido o suficiente para forçá-lo a proteger seus filhos da intolerância e do preconceito das pessoas.

Ainda assim, por toda a vida, Canibá teria, como grande índio, sangue puro, de responder gentilmente: “se estou aqui nesta cidade há tanto tempo e não ataquei ninguém ainda é porque não vou mutilar vocês. Fiquem tranqüilos.”

Guardei essas palavras daquele gentil rapaz no coração para tentar me fazer mais humana.

Que eu nunca fale coisas desse tipo a ninguém.

Que eu nunca julgue as pessoas com minha suposta bondade.

Que eu seja gente igual a meu amigo Canibá.

(Canibá é Técnico, cidadão respeitoso, inteligente e educado, embora tenha acolhido nossa cultura, vestindo-se como nós e não conheça nenhuma língua indígena. Neto de índio Canibal, filho de um pai zeloso e bom, Canibá é uma pessoa com quem a gente cresce por estar junto).