Enfeitiçados pelo consumismo

Ela sempre foi linda demais. E eu ia pegá-la na escola, ainda em suas primeiras letras. Na porta da escola, um carrinho de pipoca pintado de azul. O vendedor ali, quietinho, vendendo vários saquinhos brancos cheios daquela coisa salgadinha e Sassá falava: “Tia, essa pipoca tem um cheiro bom, não é?” Bastava essa cantada dela para eu me render aos seus enormes cílios que se fechavam e abriam em seus olhos verdes sorridentes e brilhantes e dizer: “moço, me dê um saco desses!”. Pronto. Confesso que nunca resisti a um pedido, ainda que cantado e discreto daquela menina de olhos grandes. Nunca. Seu sorriso, a vida inteira, me convenceu de que eu precisava atender aos seus caprichos, pedidos, conversas, histórias.

Romantismos à parte, é mais ou menos desse jeito que os aparelhos ideológicos agem. Nos cantam, nos convencem de que precisamos adquirir e consumir o último lançamento daquele sorvete maravilhoso ou daquela nova margarina que derrete no milho e a família ‘está feliz’.

O dia está calmo, a paz reina nos lábios brancos e sorrisos perfeitos daqueles atores e sairemos amanhã cedinho a comprar o último lançamento daquela nova camiseta que está na moda, o último colar que aquela atriz usou ontem à noite na novela e o último lançamento de não sei mais o quê. Um novo ipod, um novo celular, uma nova TV.

Isso explicaria porque mulheres que só possuem dois pés (e é?) costumam ter ou querem comprar cem pares de sapatos. Mulheres ou centopéias?

Se por um lado há neuróticos anais que adoram guardar, retém desde suas próprias fezes no intestino) até aquelas velhas canetas (de várias marcas, é claro”), por outro há os que querem adquirir coisas porque sua autoestima não é lá tão boa e precisam se firmar socialmente exibindo roupas caras, por exemplo. Mas ainda há gente que simplesmente não consegue resistir aos apelos da mídia. E compram compulsivamente, e gastam e se desgastam.

Os propagandeiros não se cansam de dizer: ‘você não pode perder, você precisa comprar’. E nós os seguimos, como gados, sem qualquer reflexão, sem qualquer objeção, só obedecemos. Apenas atendemos ao clamor ao consumo. Vamos correndo ao mercado comprar aquilo que nem é uma necessidade minha. Aquilo que passou pelo meu desejo, estimulado por outra pessoa mais bonita, próspera, talvez mais inteligente que eu.

Eu penso que não sejamos suficientemente críticos. Agimos o tempo inteiro mais emocionalmente que racionalmente. É fato que nossas ações são muito mais inconscientes que conscientes (vejo isso todos os dias no consultório). E vamos sendo levados por todo tipo de vento, idéias, apelos. Eu não penso, não critico meu pensamento, não me pergunto: será que preciso mesmo disso ou daquilo?

Claro que esse é um tema bastante difícil. Passa pela minha emoção. Passa pelo desejo. E desejo é coisa da nossa subjetividade. Quase insondável. O que você deseja? E, parafraseando o Psicanalista Jorge Forber: “você quer o que deseja?” Quer mesmo? Porque se tenho algo em minhas mãos aquilo vai ter um custo. Todo ganho tem um custo. Todo. Exemplo: você passa no vestibular. Muito bom! Parabéns! O preço disso será perder umas horinhas de sono, se preocupar com a prova e o trabalho de amanhã. Além de muitas outras ocupações próprias de um curso superior. É bom? Claro que sim! Os ganhos também são muitos. E certamente valerá a pena.

O ponto principal que quero levar em conta é: desejo ou necessidade? Eu tenho consciência de que o que desejo é realmente algo de que necessito de fato ou é fruto de uma idéia, uma propaganda midiática, uma imposição do outro e não minha?

No consultório a gente encontra muita gente ansiosa por consumir. Consumir desde objetos, coisas, até pessoas. Usam pessoas como objetos seus. Esse paciente normalmente é acolhido, respeitado e, acima de tudo, escutado. Especialmente ele deverá se ouvir, se conhecer, se gostar até conseguir gostar genuinamente do outro. Num processo terapêutico lento, mas eficaz.

Há uma distância entre ser cidadão e consumidor. Há uma distância entre saúde emocional e aqueles desejos ansiosos que a gente carrega pela vida compulsivamente até se ‘realizar’ e consumir o próximo alvo. Numa roda viva que pode gerar muito mais angústia que prazer. Quem poderá entender o ser humano?

Querer não é errado e ter utopia nos leva adiante, como se estivéssemos caminhando na direção de nossa realização pessoal. O convite fica no sentido de pensarmos sobre nossos pensamentos, criticarmos nossos desejos para, com alguma consciência, se isso é possível, agirmos e sermos mais próximos de nossa própria humanidade. Tranquilos, saciados, felizes e seguros. Sabendo dizer “Não” quando se tem que dizer não e “Sim”, quando for o momento oportuno.

Quanto a mim, em relação àqueles olhos verdes, já está decidido: será sempre “Sim”.

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